Competência da justiça militar

Por: Almir Pazzianotto Pinto 27 de fevereiro de 2024

As ciências jurídicas são oceanos com limites indefiníveis em permanente movimentação, e extensas áreas azuis-cinzentas.  Legaz y Lacambra – Sociologia do Direito

Não desejo tomar partido em questões que mal conheço. É impossível, todavia, ignorar aquilo que se tornou alvo de debates públicos. Refiro-me às acusações da prática de crimes contra o regime democrático, imputadas a oficiais superiores das Forças Armadas, entre os quais oficiais generais da ativa e da reserva.

Antes de tudo, é necessário preservar a imagem e o papel da Marinha, Exército e Aeronáutica, como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”, incumbidas da defesa da Pátria, da garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, como se lê no art. 142 da Constituição da República.

Faltaria espaço, em breve artigo, para relatar os feitos das Forças Armadas na defesa da soberania nacional e da inviolabilidade do território, desde a expulsão dos holandeses, passando pela guerra do Paraguai, até chegarmos ao heroísmo da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na II Guerra Mundial, em terras da Itália.

 Algo, porém, está acima de paixões. Como ensina Aliomar Baleeiro, nos Comentários à Constituição de 1891, o Tribunal Militar foi criado pelo Príncipe Regente, e futuro Rei Dom João VI, em 1808, após a chegada da Família Real ao Brasil. A Constituição de 1891 o preservou, “como órgão administrativo com funções jurisdicionais, para garantia dos militares”. Como sabemos, a Justiça Militar esteve presente nas constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 (Emenda nº 1/1969) e não poderia faltar na Constituição de 1988 (arts. 122/124).

De acordo com a atual Constituição, independentemente de ser civil ou militar, nenhum brasileiro será submetido a tortura, tratamento desumano ou degradante. Se vier a ser processado, sê-lo-á pela autoridade judicial competente. Não perderá a liberdade ou os bens sem o devido processo legal, e terá assegurado amplo direito de defesa. Por fim, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória. É o que diz o art. 5º do capítulo que trata Dos Direitos e Deveres Fundamentais e Coletivos (Incisos III, LIII, LIV, LV, LVII).                  

No art. 122 a Lei Fundamental determina que são órgãos da Justiça Militar o Superior Tribunal Militar e os Tribunais e juízes militares. Compete-lhes “processar e julgar os crimes militares previstos em lei”. O parágrafo único do dispositivo ordena que “A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar”.

Há, portanto, legislação regulatória da matéria deste artigo. Na hipótese de militar das Forças Armadas ser acusado de crime praticado no exercício das funções, será processado e sentenciado por juiz ou Tribunal Militar, conforme ordena a Lei Fundamental.

Comentando à Constituição de 1946, Pontes de Miranda teceu considerações válidas para a Constituição de 1988. Escreveu o jurista que “Não é possível, de jure condendo, por exigência mesma da disciplina e da finalidade das forças armadas, excluir-se o aparelho judiciário peculiar a elas. (…). Em todos os tempos houve Justiça própria do Exército e das Armadas. Tem-na, por necessidade da missão, as próprias naves mercantes, para os casos estritamente indicados. Quem diz disciplina, diz ordem dentro de certo grupo” (Tomo III, Editor Borsoi, RJ, 1963, pág. 392).

A Justiça Militar tem como arcabouços o Código Penal Militar, Decreto-Lei nº 1.001, de 1969; o Código de Processo Penal Militar, Decreto-Lei nº 1.002, de 1969; o Estatuto dos Militares, de 1980; a Lei de Organização Judiciária Militar, de 4/9/1992; o Regulamento Disciplinar do Exército, de 26/8/2002.

Segundo a definição do art. 5º, do Código Penal Militar, “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão ainda que outro seja o resultado”. De acordo com o art. 30, o crime se diz consumado “quando nele se reúnem todas os elementos de sua definição legal”, e tentado “quando iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente” (incisos I e II). Se não houver ação, não haverá omissão.

No dia 1º de outubro, revolucionários gaúchos, comandados por Getúlio Vargas, dominaram unidades do Exército, dando início à Revolução de 1930. Da mesma forma aconteceu em 31/3/1964, quando o general Olímpio Mourão Filho passou da conspiração à ação, com batalhões sob seu comando em marcha para derrubar João Goulart.

Trocas de mensagens eletrônicas, entre Jair Bolsonaro e ministros do seu governo, longe estão de tipificar crime contra o Estado Democrático de Direito. Têm o sabor de bravatas ditas em momentos de irritação, incapazes, porém, de se transformarem em ação e de produzirem efeitos.

Almir Pazzianotto Pinto é advogado, ex-ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

Veja aqui o texto original publicado.

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