O Clube Militar concorda, plenamente, com o artigo “A proteção social das Forças Armadas – Um tema recorrente e ainda mal compreendido” da Coluna Previdencialhas, do site Migalhas, de autoria do advogado, doutor em Direito Público, Fábio Zambitte Ibrahim, que é uma resposta à matéria de O Globo, escrita pela jornalista Geralda Doca sobre o sistema de Proteção Social dos militares das FFAA.
A proteção social das Forças Armadas – Um tema recorrente e ainda mal compreendido
Em recente publicação jornalística, o periódico “O Globo” apontou que o “Déficit per capita da previdência dos militares é mais de 18 vezes o custo de aposentados e pensionistas do INSS”. A matéria, com algum tom sensacionalista, descreve, também, que o “gasto do Tesouro para cobrir rombo nas Forças Armadas chega a R$ 162 mil por beneficiário”.
A notícia adota, de início, a premissa na qual “Os sistemas previdenciários no Brasil, dos setores público e privado, padecem de um crônico rombo nas contas, que a União tem de cobrir”. A afirmativa não é propriamente correta, especialmente por ignorar regimes previdenciários de servidores em equilíbrio – ainda que em minoria – e as medidas recentes de ajustes do RPPS Federal que tendem à estabilização no futuro. Todavia, o propósito do presente artigo é outro: o sistema de proteção social dos militares.
Nos últimos 30 anos, tenho apontado um aspecto um tanto quanto óbvio do referido regime: o sistema de proteção social dos militares dificilmente poderia ser qualificado como previdenciário, especialmente pela necessária adoção de medidas coercitivas de renovação da tropa, mediante avaliações e regramentos bem mais restritivos de aptidões físicas e mentais. Nada de muito diverso do resto do mundo: são pessoas que devem possuir plenas capacidades para a defesa do território nacional e sua população.
Por isso, ao longo do presente texto, o alegado “déficit” do sistema, entre aspas, é assim exposto de propósito. A terminologia poderia induzir o leitor a erro, pois parte-se da premissa que um modelo deficitário poderia ser equilibrado mediante contribuições dos próprios interessados. Não é o caso. O retiro precoce necessário ao desempenho da atividade militar dificilmente poderia produzir tal resultado. Novamente, temos de entender a questão nos seus devidos termos.
Nesse contexto, uma primeira premissa importante: o dispêndio com Forças Armadas, o qual não se limita a equipamentos militares, também inclui a remuneração de pessoal, ativo ou inativo. E esta despesa, como todas decorrentes das Forças Armadas, é custeada pela sociedade. O modelo nacional, como regra mundial, adota sistema protetivo para as Forças Armadas desprovido de natureza previdenciária; é mantido pela população que, conscientemente, na Constituição, entendeu por bem ter força bélica para a defesa de ataques externos (especialmente importante em um mundo cada vez mais inseguro).
Isso não significa, por outro lado, que os militares não façam contribuições ao sistema. Uma confusão relativamente comum é entender a contribuição mensal de militares, para fins exclusivos de pensão militar em favor de dependentes, como elemento contributivo voltado, também, para a inatividade do próprio militar. Aquela modalidade é contributiva; esta, não. É claro que nesse contexto, o “déficit” é monumental, pois adota-se, como receita total, aporte com finalidade bem mais restrita.
Ou seja, apontar um pretenso “déficit” na proteção social das Forças Armadas seria o mesmo que discorrer sobre a ausência de custeio adequado pelos percipientes de prestações estatais desprovidas de custeio prévio: é uma compreensão errada. Modelos de proteção social não-contributivos, obviamente, nunca serão equilibrados financeiramente com aportes dos próprios beneficiários, pelo singelo motivo de que tais contribuições não existem ou são limitadas. Como já exposto, os aportes de militares somente tomam lugar para fins de pensão por morte. A transferência para a reserva remunerada, não propriamente qualificável como “aposentadoria”, é ônus estatal.
Fixada a referida premissa, tem-se a primeira conclusão: comparar sistemas previdenciários com o modelo de proteção social militar é cotejar alhos com bugalhos. São coisas distintas. A preocupação com o dispêndio público, seja qual for – previdenciário ou não – é relevante e necessária, mas separar as coisas, nos seus devidos termos, é uma etapa necessária e importante na presente discussão.
Além da comparação indevida, o texto jornalístico não trouxe a menor tentativa de aproximação dos modelos diversos de proteção social. Por exemplo, na referida análise jornalística, por qual motivo não foi incluído o aporte patronal porventura devido? O tema foi curiosamente mencionado ao final do artigo (parte raramente alcançada pela maioria dos leitores), mas sem qualquer projeção em números. Nos parece que seria possível uma breve e simples simulação de valores.
O art. 2º da lei 9.717/98 limita a contribuição da União Federal ao dobro da contribuição do servidor ativo. O militar, além de não ser qualificável como servidor, ao menos desde a EC 18/98, não possui contribuição, mas isso não implica a exclusão dos aportes patronais, nos termos da legislação citada. Ou seja, além de o limite do dobro da contribuição não ser válido para a situação, deveria, ao menos, ser quantificado o aporte “patronal”, para uma comparação minimamente razoável e honesta entre regimes previdenciários de servidores e o modelo de proteção social militar.
Além de incorreta a comparação do modelo militar de proteção social, preponderantemente não-contributivo, com outros modelos contributivos de servidores públicos, pior ainda é fazê-la sem adicionar os aportes que seriam devidos pela União Federal, mesmo que de forma fictícia. No caso concreto, adotando-se o dobro da alíquota ordinária dos servidores (14% na regra da EC 103/19), haveria redução de, aproximadamente, 9 bilhões de reais no “déficit” apontado1. Não é pouca coisa. Isso sem considerar o dobro também dos aportes de contribuições para fins de pensões por morte – estes existem – e totalizam algo próximo a 9,2 bilhões de reais.
Nesse contexto, os números apresentados carecem de dedução de um aporte necessário da União Federal de 18.4 bilhões (9,2 bilhões x 2 das contribuições para pensões que são, efetivamente, realizadas) e outros 9 bilhões de um aporte patronal sobre as remunerações dos militares ativos. Ainda que militares ativos não possuam contribuições, a cota patronal, pelo menos para os fins desejados na matéria jornalística, deveria ter sido adicionada. Mediante essa simples análise, já temos 27,4 bilhões de reais, reduzindo a menos da metade o alegado “déficit”.
Em resumo, é importante a preocupação de órgãos de controle com o dispêndio militar, mas comparações incorretas e superficiais com modelos protetivos de outra natureza não ajudam. Muito menos aplicar rótulos de privilegiados aos militares. A sociedade brasileira, infelizmente, é bastante desigual, e qualquer comparativo do trabalhador ou aposentado médio com parcelas melhor remuneradas do setor público produzirá resultados potencialmente dramáticos. A solução é complexa, mas seguramente não passa por notícias espetaculosas.
Especialmente quando se observa a realidade nacional na qual diversas carreiras públicas, em etapa inicial, propiciam remunerações equivalentes a oficiais generais, nos parece difícil e mesmo injusto rotular um grupo de pessoas que se submetem ao retiro precoce como um grupo de privilegiados. Tais afirmativas somente geram desinformação e, pior, um sentimento de revanchismo relativo a um passado que, felizmente, não mais nos pertence.
Confira o texto original aqui.
Fábio Zambitte Ibrahim é advogado, doutor em Direito Público.