O que deve ser lembrado

Por: Sérgio Paulo Muniz Costa 9 de janeiro de 2023

Sérgio Paulo Muniz Costa, historiador

É compreensível que, em meio a mais uma crise política no Brasil, a população volte os olhos para as suas Forças Armadas. Aspectos históricos, sociológicos, culturais e políticos conferem a elas papel permanente na vida nacional, hoje definido na lei maior, a Constituição Federal, fatores que, no entanto, até chegarmos ao presente ordenamento jurídico, constituíram uma memória que não pode ser esquecida.

Essa memória é do povo, mais ou menos compartilhada em todas as classes sociais, mas ela deve estar particularmente acesa entre os militares. Afinal, não se pode esperar de pessoas que não se submeteram à exigente vida castrense a compreensão do que seja uma existência dedicada ao serviço da Pátria. Mas se deve esperar de quem assumiu compromissos definitivos a defesa dos princípios que pautaram suas vidas dedicadas a esse serviço, pela exata compreensão do que seja.

A soberania e a unidade nacional, a pacificação de revoltas e revoluções, a defesa da integridade territorial e a tomada de posição do lado certo da História nos grandes conflitos mundiais se constituem em uma epopeia da qual não poderiam estar ausentes as Forças Armadas. Como asseverou John Keegan, um dos mais profícuos historiadores militares da modernidade, “não é pelo que os exércitos são, mas pelo que eles fazem que as vidas das nações e dos indivíduos se modificam”.

Ao longo dessa epopeia, as Forças Armadas, obedientes ao governo, como instrumentos do Estado a serviço da Nação, cumpriram o seu papel em distintas situações, conjunturas e regimes que o País viveu. Dominaram rebeldes, venceram invasores e pacificaram o País, tantas vezes quanto foi necessário. Fizeram o que deviam, deixando à História a certeza de estarem prontas a fazê-lo novamente.

Mas tão importante quanto o que elas fizeram foi o que não fizeram. O que ensina o que não farão.

Ao longo dos duzentos anos do Brasil independente, as Forças Armadas jamais ficaram contra o povo brasileiro. Se assim o pareceu no momento tumultuado do fechamento da Constituinte em 1823, pouco tempo depois, em 1831, estavam ao lado do povo que exigia o respeito à sua soberania, reiterando a Independência.

Mesmo nas maiores crises internacionais caracterizadas pelo choque de ideias que marcaram o terrível século XX, as Forças Armadas não se deixaram levar por ideologias, concepções e lideranças estrangeiras, jamais atraindo ao ambiente do País conflitos estranhos ao interesse nacional e à índole brasileira.

E, em todas as rupturas institucionais havidas na História do Brasil, elas nunca se colocaram como instrumento de facção para afrontar autoridades ou perseguir adversários, atuando sempre para a pacificação, estabilização e constitucionalização do País, em convergência com outras instituições.

É perturbador assistirmos neste momento serem feitas pressões, demandas e acusações às Forças Armadas que simplesmente desconsideram o que elas foram, são e fizeram. Isso não é propriamente uma novidade. Intrigas, ambições e mentiras sempre rondaram os bivaques dos granadeiros, trazidas pelas vivandeiras que Castello Branco soube bem distinguir e apontar nos momentos difíceis de seu memorável mandato presidencial. O que é preocupante é assistir aqueles que, por dever de fé e ofício, deviam defender o que são e a que serviram, esquecerem disso tudo.

Socorrem-nos, entretanto, as lembranças do que não pode ser esquecido: a finalidade das Forças Armadas, os pilares que as sustentam e o seu papel na História do Brasil.

No que diz respeito à finalidade das Forças Armadas, é útil lembrar a conhecida frase do Chefe do Estado-Maior do Exército nos anos 30, General Góis Monteiro: “é tempo de termos a política do Exército e não a política no Exército”. Interpretada como um pensamento autoritário pelos intelectuais de fancaria, supostamente especializados nas Forças Armadas que construíram carreiras e rendimentos atacando-as, a colocação de Góis Monteiro é, na verdade, a pedra de toque da evolução doutrinária e operacional que levou 50 anos para ser colocada em prática e que no Exército tomou o nome de SIPLEX, o Sistema de Planejamento do Exército, simplesmente a política do Exército na sua mais correta acepção, a de estabelecer objetivos, consoante a sua finalidade precípua, o preparo para a guerra , a mais difícil e complexa atividade humana.

Quanto aos pilares que sustentam as Forças Armadas, eles são ecumenicamente reconhecidos, embora nem tão respeitados nestes dias de fúria: a hierarquia e disciplina. Não há Força Armada digna desse nome sem tais e para o reconhecimento da sua imprescindibilidade nada melhor do que a popular advertência de que quando entra a política pela porta da frente dos quarteis, saem eles pela porta dos fundos.

Finalmente, o fator mais difuso e porventura intangível: o papel das Forças Armadas na História do Brasil. Longo como é o histórico da sua participação na vida política e social da Nação, ele pode ser sintetizado na Revolução de 31 de Março de 1964, acontecimento cardeal cujo desconhecimento e distorção estão na base do desencontro que hoje vive o Brasil. Em 1964, o Exército, associado ao que havia de melhor na política e no pensamento nacional, assumiu a responsabilidade de conduzir as maiores reformas da História do Brasil. E o fez consciente, desde o início do movimento, do mal que a contaminação da Força pela política causava ao País e a ela própria. Por inúmeros atos e decisões que repercutem até hoje, o Exército erradicou do seu meio a política partidária, um objetivo institucional e um compromisso com a Nação, infelizmente incompreendidos pela elite política, pela sociedade e talvez até por militares.

O Brasil tem Forças Armadas que continuarão a ser o que são.

É o que deve ser lembrado.

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