Anistia, nem perdão e nem vingança

Por: Gen. Div R1 Marco Aurélio Vieira 14 de junho de 2022

Gen Div Marco Aurélio Vieira / Maio 2022

“… o guerrilheiro urbano tem que se fazer mais agressivo e violento, girando em torno da sabotagem, do terrorismo, das expropriações, dos assaltos, dos sequestros, das execuções, etc…”

Carlos Marighela in Manual do Guerrilheiro Urbano

O debate sobre os direitos daqueles que “lutaram contra a ditadura militar”, tema de recorrentes narrativas esquerdistas ao longo dos últimos 50 anos, precisa sair do campo emocional para o da realidade dos fatos.  Principalmente, visando esclarecer um expressivo número de jovens – e não tão jovens assim – que não viveram aqueles tempos, mas que convencidos a analisar os acontecimentos pela lente dos argumentos ideológicos, sem qualquer apreço aos fatos históricos, insistem em defender teses inverídicas, alardeando românticos slogans juvenis do século passado.

Na década de 60 e começo dos anos 70, o mundo assistiu três fenômenos históricos: o apogeu da Guerra Fria, a expansão geopolítica do comunismo e a opção pela luta armada para a tomada do poder pelos movimentos de esquerda, principalmente nos países subdesenvolvidos. Para muitos governos, a consequência foi um incremento do autoritarismo que, mesmo parecendo paradoxal, buscava a defesa das liberdades democráticas, ostensivamente ameaçadas pelos objetivos revolucionários da doutrina marxista/leninista. Um dado significativo desses tempos confirma essa assertiva: o surgimento de governos autoritários em um terço das democracias existentes em 1956, especialmente na América Latina. Esse fenômeno se verificou ainda na Grécia, Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e na Índia, onde Indira Ghandi implantou um regime de exceção, com apoio popular. Enquanto isso, nas próximas duas décadas, milhares de vidas de jovens eram desperdiçadas nos gulags russos, no paredão da revolução cubana e na guerra do Vietnã.

E foi no emblemático 1956, em fevereiro, que o jornal Estado de São Paulo publicou na íntegra o relatório secreto de Kruschov – então Premier da Rússia – na conclusão do XX Congresso dos

Partidos Comunistas, trazendo à tona todas as atrocidades dos expurgos e dos crimes contra a liberdade do Stalinismo, assim como as novas diretrizes do Partido Comunista russo. A confissão das 20 milhões de mortes ocasionadas por um regime que se dizia defensor dos operários, e a mudança radical na sua estratégia ideológica, deixando de pregar o conflito mundial e passando a defender uma coexistência pacífica, caíram como uma granada na trincheira do Partido Comunista Brasileiro. Fundado em 1922, com históricos e aguerridos militantes – alguns deles na clandestinidade – defensores de Stalin e da violência para a tomada do poder, o PCB se viu então em crise. Por um lado, havia  deserção muitos de seus membros, que se sentiram traídos em seus ideais humanitários. De outro, instalou-se a falta de convicção para defender a causa, por descrença nos novos métodos propostos. O culto à palavra de Stalin, mais romântico que ingênuo, era o aspecto mais emocionante da coesão comunista. E segundo Carlos Prestes, as reações àquelas verdades incômodas escancaradas por Moscou foram dramáticas, com Marighela e João Amazonas chegando a chorar, enquanto Jorge Amado renegava o comunismo para sempre.

Em 1962, essa cisão do ideário comunista brasileiro se concretizou, quando os dissidentes Maurício Grabois e Amazonas fundaram o Partido Comunista do Brasil, defendendo “a luta decisiva e ações revolucionárias de envergadura” a serem desencadeadas pelas massas progressistas. Foi também quando a China surgiu como novo polo da expansão do comunismo, já consolidado em Cuba e em todo o Leste europeu, com ocupação do Exército Vermelho na Hungria, Alemanha Democrática e Tchecoslováquia.

Diante do quadro internacional, e da convulsão política interna, as Forças Armadas brasileiras vislumbraram três cenários para a conjuntura brasileira, em 1964: autoritarismo de esquerda, prosseguimento da anarquia sindicalista com subsequente radicalização, ou guerra civil de motivação ideológica. Ninguém acreditava ser possível um desenlace democrático. Assim, o grupo militar que interpretava os anseios históricos de moralidade administrativa e desenvolvimento nacional, nascidos com o Tenentismo em 1922, concluiu que a observância da legalidade conduziria o país ao comunismo, e liderou o movimento que estabeleceu o regime militar.

É, portanto, coisa de politólogos românticos pensar que o movimento de 1964 foi um “golpe” que interrompeu um processo normal de sucessão democrática. A opção, na época, nunca foi entre duas formas de democracia: a social e a liberal. Na verdade, deu-se o embate entre dois autoritarismos que se valiam da violência ao seu modo: o de esquerda, ideológico, ofensivo e raivoso, e o de direita, salvacionista, defensivo e conservador.

Mas, a proverbial tolerância brasileira – arranjo de políticos moderados com militares sensatos e competentes – conseguiu construir uma notável obra de engenharia política. Mesmo naquele ambiente de convulsão social, e ainda diante das fortes pressões para que se adotassem soluções radicais, eles estabeleceram um regime autoritário ponderado, necessário e suficiente à resistência ao comunismo, sem que houvesse derramamento de sangue.

Inconformada, a ala radical dos partidos de esquerda, que pregava a tomada do poder pela luta armada, atomizou-se em inúmeras siglas – PCBR, ALN, MR8, VPR, VAR… – e uma sangrenta guerrilha contra o governo se alastrou. Ao mesmo tempo, Cuba passou a representar uma base de apoio aos movimentos guerrilheiros na América do Sul, tendo conseguido áreas liberadas na Bolívia, Peru, Venezuela, Colômbia e ainda em quase toda a América Central. A guerra acontecia dentro e fora do país.

É nesse contexto histórico que se deve analisar o episódio da luta armada no Brasil.  Os guerrilheiros dos “anos de chumbo” não eram escoteiros, fazendo piqueniques na selva com canivetes suíços. Eram ideólogos raivosos, que escolheram por vontade própria combater de armas na mão, contra um governo instituído. Eram homens e mulheres obstinados em criar focos de insurreição, sequestrando, matando e até “justiçando” companheiros se preciso fosse, para implantar uma ditadura do proletariado, no maior país da América do Sul

De fato, as décadas de 60 e 70, no auge da Guerra Fria e da luta armada no Brasil, foram épocas de imensa brutalidade, mas são páginas viradas da nossa história. A sociedade brasileira conseguiu superar esse trauma na forma de uma transição civilizada do autoritarismo para a democracia, que exigiu exaustiva discussão entre o Estado, antigos guerrilheiros, partidos políticos, operadores do Direito e a própria sociedade. O Brasil encontrou um caminho para que se pacificassem os ânimos, em um ato jurídico perfeito: a chamada Lei da Anistia. Lembrando que anistia não é justiça, nem perdão, e nem esquecimento, mas sim um instituto legal, que de forma inteligente e com a aquiescência de todos os envolvidos em atos de violência – reconhecidos e não resolvidos – visa relevar o passado e fazer os antigos contendores olhar para o futuro.

A desinformação sobre esse período sombrio da história do Brasil, que traz no pacote uma versão glamourizada da violência da guerrilha, e como brinde a demonização das Forças Armadas, continua desconsiderando os fatos, insistindo em duas narrativas tendenciosas: uma, da nostalgia seletiva de brasileiros tombados naquela guerra suja, enquanto se finge não haver vítimas de ambos os lados do campo de batalha, o que não passa de falsa compaixão ideológica; outra, sobre os direitos de reparação pecuniária apenas daqueles envolvidos na violência armada contra o Estado, uma hipócrita monetização do livre arbítrio político, hoje responsável por uma verdadeira indústria de mais de 20 mil indenizações, muitas obtidas segundo critérios questionáveis, com despesas superiores a 500 milhões/ano, para os cofres públicos.

Propor revisão da Lei da Anistia é um desserviço para o País. É desprezar o enorme esforço político, e o gigantesco passo que a sociedade brasileira deu na direção da paz e do desenvolvimento seguro da Nação. Afinal, vingança não cabe em anistia, passado não tem preço, e ainda temos um Brasil por fazer.

Gen Div Marco Aurélio Vieira

Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada Paraquedista.

Topo