Nesses últimos sessenta anos, a contrarrevolução de 31 de março de 1964 tem sido focada, exaustivamente, por historiadores, jornalistas e políticos dos mais variados matizes. Suas causas, motivações, desdobramentos, consequências, erros e acertos, são bem conhecidos dos analistas, principalmente daqueles que, isentos, buscam as verdades do período num emaranhado de informações e narrativas duvidosas, quase sempre sob forte influência de componentes ideológicos. A
chamada esquerda brasileira, derrotada no passado, mantém a sua estratégia de reescrever a história ao sabor de interesses políticos e eleitoreiros. Cabe-nos, como verdadeiros democratas, repetir à exaustão os fatos históricos que há 60 anos evitaram que o nosso país fosse lançado numa aventura comuno-sindicalista, incompatível com os valores e princípios que forjaram a nacionalidade.
Um dos episódios daquele contexto que merece destaque é o da defesa do Palácio Guanabara – sede do governo estadual – nas quarenta e oito horas que culminaram com a fuga do país do Presidente da República. Naqueles dias conturbados do início de 1964, o recém-criado Estado da Guanabara era governado por Carlos Frederico Werneck de Lacerda, opositor ferrenho do governo do Presidente João Belchior Marques Goulart. Orador inflamado, grande administrador, Lacerda era um dos mais importantes líderes da resistência democrática brasileira contra o avanço do totalitarismo de esquerda que ameaçava levar o nosso país para bloco soviético.
O relato que se segue é uma tentativa de resumir a história da defesa do Palácio Guanabara contra possíveis ataques desesperados de um governo agonizante. As fontes utilizadas são depoimentos, relatos, entrevistas, documentos e noticiário da imprensa. Como integrante do dispositivo militar montado para rechaçar um eventual – mas esperado – ataque à sede do governo estadual, armado
com uma metralhadora INA .45 – na época um jovem tenente de 24 anos – irei descrever o que a minha memória reteve, tanto tempo já decorrido. O objetivo maior do artigo é a preservação da história de um importante episódio daqueles dias, onde se mesclam emoções, patriotismo, desprendimento, coragem, solidariedade, lealdade e companheirismo.
O plano de defesa do Palácio Guanabara começou a se delinear no segundo semestre de 1963. O cenário político de então já mostrava, claramente, a disposição do governo federal em retaliar o Estado da Guanabara por sua oposição radical ao sistema dominante. O governador Lacerda, ao lado de importantes lideranças civis e militares, defendia, ostensivamente, a queda do presidente João Goulart. Odiado pela esquerda brasileira, principalmente pelos comunistas, Lacerda – que na sua
juventude renegara o marxismo-leninismo – sabia dos riscos a que o seu governo estaria exposto numa situação de confronto com o presidente Jango, especialmente se houvesse o envolvimento das Forças Armadas. Valendo-se da antiga amizade desenvolvida com um grupo de oficiais da Força Aérea Brasileira quando do episódio do atentado que, em 1954, vitimou o Major Aviador Rubens Florentino Vaz, no qual ele próprio foi também ferido, o governador Lacerda nomeou para Secretário de Segurança do Estado o Coronel Aviador Gustavo Eugênio de Oliveira Borges, e incumbiu-o de elaborar um plano de segurança e defesa para a sede do governo estadual, no Palácio Guanabara. No documento foram priorizados investimentos em três setores dos organismos policiais do Estado: comunicações (em especial via rádio), transportes (inclusive viaturas do tipo “choque”) e armamento (especialmente metralhadoras). Como resultante do aperfeiçoamento nas comunicações, as “patrulhinhas” da Polícia Militar tiveram ação relevante no acompanhamento da movimentação das forças hostis nos dias 30/31 de março e 1º de abril de 1964. Postadas, sem chamar a atenção, em locais estratégicos, mantiveram o centro de controle abastecido de informações via rádio, em tempo
real. Outra relevante providência adotada nessa área foi o estabelecimento de um centro de controle móvel, com três viaturas equipadas e prontas para, rapidamente, se deslocarem com destino a qualquer ponto do Estado. Esse dispositivo de comunicações foi acionado com ótimos resultados, tendo sido fundamental a participação de um elemento civil, um radioamador voluntário que teve marcante atuação, assegurando ao governador um canal permanente com Minas Gerais, apesar do bloqueio telefônico imposto ao Palácio.
O planejamento da defesa do Palácio Guanabara pretendia atingir três objetivos principais: “O aspecto moral e psicológico da manutenção em nosso poder daquilo que simboliza a defesa da democracia na Guanabara; o aspecto concreto da preservação da vida do governador; e finalmente proporcionar os meios para o governador proclamar, via rádio para todo o Brasil, a agressão sofrida, denunciando o golpe comunista e conclamando o restante do país à resistência”.
O plano de defesa do Palácio Guanabara
O plano, resumidamente, previa cinco linhas de defesa:
1ª linha – cinco batalhões da Polícia Militar, dispostos em arco, desde o Hotel Glória até uma posição ao norte do Palácio. Elementos da polícia civil, descaracterizados, fariam rápidos ataques de inquietação. Esta primeira linha de defesa foi apenas parcialmente acionada.
2ª linha – grupamento formado por militares e civis voluntários, sob o comando do Cel Av João Paulo Burnier, equipados com armas automáticas, antitanques, coquetéis molotov e dinamite. Esses elementos, formando pequenos grupos de combate, ficariam dispersos tanto nas vias de acesso ao Palácio como em apartamentos cedidos por moradores, preferencialmente entre o 4º e 6º andares. O
posto de comando do Cel Burnier foi instalado na Escola Anne Frank. Esta linha de defesa foi ativada no início da tarde do dia 31. Desse contingente de voluntários fazia parte o ex-combatente da FEB Cel Osnelli Martinelli que comandava o grupo nº 22, cuja missão era proteger as entradas do túnel Catumbi-Laranjeiras.
3ª linha – formada pelo 2º Batalhão da Polícia Militar (quartel da Rua São Clemente) que ficaria entrincheirado em sucessivas linhas de caminhões pesados da frota do Estado (a maioria da COMLURB) posicionados de modo a dificultar o acesso de carros de combate e demais viaturas inimigas. Esta linha entrou em operação na manhã do dia 31.
4ª linha – constituída por voluntários “especiais” com armas antitanque mais pesadas. Algumas viaturas (jipes e caminhonetes) foram adaptadas para esse tipo de armamento e certamente se constituiriam num fator de grande surpresa para as forças hostis. Ficariam em reserva e entrariam em ação quando as três linhas anteriores já tivessem retraído e concentrado seus elementos nas quatro vias de acesso à Rua Pinheiro Machado. Esses voluntários “especiais”, em sua maioria militares com experiência no manejo daquele armamento, estavam sob o comando direto do Cel Burnier.
5ª linha – formada pela 1ª Cia Independente da PM, sediada no Palácio, por vários choques da Polícia de Vigilância e reforçada, eventualmente, por elementos remanescentes das linhas anteriores. A resistência final seria na própria sede do governo, prevendo-se a retirada pelo maciço do Sumaré. A tática seria trocar espaço por tempo. Para o governador e outras autoridades estava planejada uma
evasão com destino às lanchas do Corpo Marítimo de Salvamento, colocadas em pontos estratégicos da praia. Essa última linha de defesa seria comandada pelo General (ex-integrante da FEB) Salvador Gonçalves Mandin, Secretário de Serviços Públicos do governo do Estado.
No plano de defesa do Palácio – cujo dispositivo ficou parcialmente pronto na segunda-feira, dia 30 de março – foram também incluídos serviços de intendência (com suprimentos diversos), geradores de energia (dois grupos) e serviços médicos. Nas encostas à retaguarda do Palácio (morro Novo Mundo) foram derramados mais de mil litros de óleo diesel com a finalidade de dificultar qualquer tentativa de progressão do inimigo com armamento mais pesado. Também foram acionadas viaturas do Corpo de Bombeiros. O plano previu até mesmo um dispositivo para o enterro dos mortos.
Os acontecimentos
Dia 31 de março de 1964
04:30 horas – chega ao Palácio Guanabara a notícia de que o comandante da 4ª Região Militar, General Olímpio Mourão Filho e o governador de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto, se declararam rebelados, não mais obedecendo ao poder central. Era o desencadeamento da Operação Popeye, planejada de há muito pelo Gen Mourão. Em consequência, estava formado o “Destacamento Tiradentes”, com tropas do Exército e da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, que marcharia para o Rio de Janeiro sob o comando do General Antonio Carlos da Silva Murici. O governador Lacerda está no palácio desde o domingo, dia 29. Na noite anterior assiste até tarde ao filme “O PT-109”, sobre a participação do presidente Kennedy na II Guerra Mundial. Com as notícias vindas de Minas Gerais, o governador é imediatamente acordado pelo seu secretário particular, Hugo Levy, e assume o comando das ações. Chegam informações das Radiopatrulhas da PM que tropas da Vila Militar já se deslocam para enfrentar as forças do Grupamento Tiradentes, a caminho do Rio de Janeiro. As linhas de defesa do Guanabara entram em alerta. Caminhões pesados do Departamento de Limpeza Urbana, atravessados nas ruas Pinheiro Machado, Paissandu, Ipiranga, Coelho Neto e Farani, formam barricadas que isolam o Guanabara. Voluntários fortemente armados assumem suas posições, inclusive nos terraços de edifícios próximos. Uma metralhadora pesada Hotchkiss é colocada pela PM junto à porta do salão nobre onde se encontra o governador. Há um clima de expectativa e vibração entre os militares e civis que integram o dispositivo.
Poucos dias antes, um grupo de marinheiros apoiados por fuzileiros navais comandados pelo Almirante Cândido da Costa Aragão foram protagonistas de um triste episódio de desordem e quebra de hierarquia. Na ocasião, o governador Lacerda fez violentos pronunciamentos em defesa da honra da Marinha e contra as atitudes aqueles militares. Temia-se uma ação violenta do Alte Aragão contra a sede do governo do Estado.
16:00 horas – uma RP da PM estacionada nas proximidades do então Regimento de Reconhecimento Mecanizado comunica que uma formação de cinco carros de combate M-41 (recém chegados dos Estados Unidos) deixa o quartel no Campinho em alta velocidade. Outras RP assinalam o trajeto dos blindados: Piedade, Méier, Maracanã, Mangue, Ministério da Guerra, no Palácio Duque de Caxias. Em seguida, novas notícias de sucessivas saídas de mais carros de combate, seguindo o mesmo itinerário. Entretanto, os cinco últimos blindados não estacionam no Ministério, ao lado da Estação da Central do Brasil. Seguem pela Rua Uruguaiana, em direção ao Catete. Pode ser uma investida contra o palácio. O Cel Burnier, entretanto, raciocina diferente: diante do forte dispositivo de proteção montado em torno do Guanabara, com apenas cinco carros de combate e sem tropa de infantaria, certamente não haveria intenção do “inimigo” de atacar a sede do governo estadual. Apesar disso, a 3ª e 4ª linhas de defesa são colocadas em alerta máximo. Os blindados, entretanto, se dirigem ao Palácio das Laranjeiras onde ainda se encontrava o presidente Jango e numerosos membros de seu governo.
16:10 – aviões da FAB fazem voos rasantes sobre o Guanabara. Apesar do temor de um ataque aéreo, há uma impressão geral de que a FAB não atacaria o Palácio em virtude da presença de inúmeros oficiais da Aeronáutica entre os seus defensores, inclusive do Marechal do Ar Eduardo Gomes, lenda viva da Aeronáutica e que em 1984 viria a ser declarado Patrono da Força Aérea Brasileira.
20:00 – o governador Lacerda inicia uma das muitas reuniões do Secretariado. Identifico várias figuras conhecidas: Deputado Abreu Sodré, General Salvador Mandin, Profª Sandra Cavalcante, Radialista Raul Brunini, Rafael de Almeida Magalhães, Deputado Cel Costa Cavalcanti, Deputado Nina Ribeiro, Cel Av Américo Fontenelle, Deputado Cel Danilo Nunes, Coronel PM Edson de Moura Freitas, Coronel Av Gustavo Borges, Coronel Gervásio Deschamps, Sebastião Lacerda (filho do governador), Jornalistas Hélio Fernandes e Sebastião Nery, Deputado Mac Dowell Leite de Castro, entre muitos outros. Ao final da reunião, todos assistimos a uma missa na capela de Santa Terezinha, nos jardins do Palácio, celebrada por um capelão.
22:00 – as RP informam que fuzileiros navais do Batalhão Riachuelo deixam o quartel da Ilha do Governador. Essa notícia gera inquietação entre nós. Sabíamos que era muito provável um ataque ao Guanabara. Decorrido algum tempo, veio a confirmação das RP: quatro caminhões tendo à frente uma viatura de assalto, com fuzileiros fortemente armados, passam pela Cinelândia, tomam a direção da Glória e dirigem-se à rua Farani. Todos nos preparamos para o confronto. O governador Lacerda recebe uma metralhadora INA e, junto com o Gen Mandin, passa em revista os postos de combate, cumprimentando e agradecendo o apoio dos militares e voluntários. No entanto, a movimentação dos fuzileiros era uma ação psicológica que haveria de se repetir outras vezes. O comboio estacionou por algum tempo próximo à Rua Farani, para, em seguida, dirigir-se ao Palácio das Laranjeiras.
Dia 1º de abril de 1964
00:30 – o clima é de muita tensão. As notícias são de adesões da área militar ao movimento iniciado em Minas Gerais. Mas uma dúvida ainda nos incomoda: aposição do II Exército, em São Paulo, comandado pelo General Amauri Kruel. Suas ligações de amizade com o presidente Jango parecem estar retardando a definição daquela Força, cujo apoio é fundamental para qualquer dos lados. O Deputado Abreu Sodré manifesta confiança no patriotismo do General Kruel e rebate algumas opiniões pessimistas. De repente, o deputado irrompe no gabinete do governador aos gritos: o Kruel já está vindo! Há uma intensa comemoração em todo o Palácio. É a certeza de que a vitória se aproxima.
01:30 – a tensão aumenta. O Palácio tem a energia cortada. Os grupos geradores instalados no jardim de inverno entram em ação. Aparelhos de ar condicionado são desligados. As linhas telefônicas também deixam de funcionar, permanecendo ativas apenas duas, ligadas secretamente. Ninguém dorme. O Marechal do Ar Eduardo Gomes chega ao Palácio acompanhado de dois sobrinhos. A seu lado, o desembargador Presidente do Tribunal de Justiça e seu filho, portando uma metralhadora. Há um cheiro de pólvora no ar. Um novo informe de uma possível investida de fuzileiros navais movimenta o nosso dispositivo. O governador se preocupa e liga para São Paulo em busca de ajuda. Era apenas mais um deslocamento de forças da Marinha em direção ao Palácio das Laranjeiras. Chove
muito. Os bravos militares da PM e da Polícia de Vigilância (P-Vg), estes últimos sob o comando de outro ex-integrante da FEB, o Cel Gervásio Deschamps, permanecem atentos em seus postos, apesar do temporal. Os grupamentos de voluntários cujas posições ficam fora do palácio recebem, a todo o momento, o carinho dos moradores. Capas de chuva, água, refeições e lanches são fornecidos por vizinhos anônimos a centenas de companheiros. Até hoje, decorridos 60 anos, ainda me emociono com tais recordações de apoio e solidariedade.
03:30 – uma notícia que muito nos alegra: numa (duvidosa) ação ousada, buscando uma informação mais conclusiva sobre os fuzileiros navais, um policial teria se apresentado no Ministério da Marinha conduzindo um rabecão do IML supostamente para atender uma solicitação das autoridades navais. A guarda teria permitido a entrada daquela viatura inofensiva (e macabra) que após um pequeno giro pelas instalações, informaria que o Batalhão Riachuelo repousava tranquilamente nos imensos corredores do Ministério, sem qualquer sinal de movimentação.
05:00 – chega ao palácio um novo grupo de voluntários, somando-se aos mais de trezentos militares da reserva já em atividade. São ao todo 31 oficiais-generais da reserva já idosos. Sobre esse episódio, mais tarde escreveu o governador Lacerda: “se colocaram à minha disposição para qualquer missão. Estavam, em sua maioria, desarmados. Os da Marinha solicitaram uma lancha para atacar uma ilha pouco defendida, onde sabiam da presença de muito armamento. Todos afirmaram que não poderiam ficar de braços cruzados naquela situação. Vocês não podem imaginar a minha emoção diante da disposição de luta daqueles homens. Confesso que fiquei com os olhos rasos d’água”.
08:00 – outro sinal de alerta: os postos avançados da Rua Farani detectam a presença de fuzileiros navais nas encostas do morro à retaguarda do Palácio. Fala-se em um possível ataque de morteiros. O governador Lacerda, usando o sistema de som instalado fora do prédio, faz uma vibrante conclamação aos moradores da vizinhança, solicitando que se recolham ao interior de suas moradias porque há indícios de um iminente ataque à sede do governo. Em sua fala, o governador apela aos cariocas para que ajudem a denunciar ao Brasil que o Palácio Guanabara está para ser atacado pelos fuzileiros navais do Alte Aragão, a quem desafia, afirmando: “não te aproximes que eu te mato com meu revólver!” Uma nova informação dá uma trégua na expectativa de um confronto iminente: os fuzileiros navais fizeram realmente uma incursão na área, mas retiraram-se em seguida.
09:00 – Chega ao palácio o produtor de televisão Flávio Cavalcanti, acompanhado do empresário Abraão Medina. Combinam transmitir pela TV-Rio o áudio de um pronunciamento do governador, o que ocorreu no meio da tarde.
12:30 – vibração geral no Palácio: o Cel César Montagna, ex-febiano, no comando de um grupo de cerca de quarenta oficiais da ECEME e da ESG, numa ação ousada, toma o Quartel-General da Artilharia de Costa, no Forte de Copacabana.
12:45 – observadores informam que o presidente João Goulart deixa apressadamente o Palácio das Laranjeiras num Volkswagen, ao lado de seu secretário de imprensa, Raul Ryff, seguido pela Mercedes oficial e outros veículos. Uma RP confirma a notícia e segue à distância o comboio até o aeroporto Santos Dumont. Na pista, Jango embarca na aeronave da FAB Viscount 2.101. Destino inicial, Brasília. Era o começo da fuga. O clima no Palácio já começa a ficar festivo. As rádios oficiais – Nacional e MEC – bem como a Mayrink Veiga, antes a serviço do governo, saem do ar. Nos edifícios, chuva de papel picado. O povo começa a lotar as ruas, cantando e pulando de alegria. Buzinaços são ouvidos por todo o Rio de Janeiro e carreatas saem às ruas. Aquele mesmo povo que ajudara a proteger o palácio do seu governador faz num verdadeiro carnaval. Na euforia da vitória, eu me pergunto com a simplicidade de um jovem tenente que, voluntariamente, pegou em armas na defesa da democracia: onde estaria o povo que Jango tanto cortejou? Porque não foi defender o seu presidente no Laranjeiras? A resposta vem rápida em minha mente: o povo brasileiro jamais aceitaria o comunismo, qualquer que fosse a sua versão. Isso valeu em 1964 e continua imutável.
15:25 – as RP informam que os fuzileiros navais estacionados no Largo do Machado, na rua Gago
Coutinho e no Parque Guinle, abandonam suas posições. A notícia, divulgada pelos autofalantes do palácio, é comemorada com intensa emoção. Fogos de artifício e disparos esparsos. Gritos, muitos gritos. Abraços intermináveis, dentro do palácio e nas ruas adjacentes.
15:50 – três carros de combate M-41 do RRecMec se aproximam do Palácio Guanabara. Um de seus comandantes parlamenta com os Coronéis da FAB Paulo Vitor e Estrela, que integram o nosso dispositivo de voluntários nas imediações da sede do governo estadual. Vinham se apresentar ao governador Lacerda para ajudar na proteção do palácio. Abrem-se, então, as barricadas que defendiam a democracia. A vibração atinge o seu clímax. O povo cerca os blindados e, aos gritos, acompanha as viaturas até os portões do Guanabara. Entre nós, as lágrimas são incontroláveis. O governador Lacerda rapidamente vem receber os militares. E chora, emocionado, quando percebe que os comandantes dos carros eram os filhos de seu velho amigo, General Alcides Gonçalves Etchegoyen. Nesse momento, juntos, abraçados, irmanados, todos cantamos o Hino Nacional Brasileiro.
Em 2 de abril de 1964, a população do Rio de Janeiro saiu às ruas na maior manifestação pública até então realizada pelos cariocas. Um milhão de pessoas comemoraram a vitória da democracia na “Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade”, que ficou conhecida como “A Marcha da Vitória”. Sessenta anos decorridos, fica para mim, voluntário do front do Guanabara, uma saudosa e emocionante lembrança. E, mesmo hoje, as lágrimas ainda são inevitáveis. Certamente, os voluntários que participaram da epopeia do Palácio, não o fizeram para proteger o governador Lacerda. A democracia era o nosso bem maior, que precisava ser preservada. E a defesa da Pátria, da Família e da Liberdade, uma motivação insuperável.
O autor, 84 anos, é professor, historiador e oficial da reserva do Exército. É membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, da Academia Brasileira de Defesa e do Instituto Histórico de Petrópolis. É presidente da Liga da Defesa Nacional/RJ. É fundador, ex-presidente e patrono do Conselho Nacional de Oficiais da Reserva e presidente do Conselho Deliberativo da Associação Nacional dos Veteranos da FEB. Os comentários do autor são de natureza pessoal.